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Lembranças escritas

Nem perto, nem longe: ao meu alcance

Por: Mt. Ms. Camila Siqueira Gouvêa Acosta Gonçalves

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        Essa é a minha sensação ao refletir sobre Lia Rejane Mendes Barcellos. Sou curitibana, me formei musicoterapeuta na Faculdade de Artes do Paraná (hoje UNESPAR) em Curitiba, com os “Cadernos de Musicoterapia”, o livro “Musicoterapia: Alguns Escritos”, e muitos de seus artigos publicados na Revista da UBAM à minha volta. Em 2005, em meu último ano da graduação, escutei minhas professoras Sheila Begiatto e Clara Piazzetta falarem de uma possível aula de “Rejane” na pós-graduação da faculdade. Para mim, sempre havia sido “Lia Rejane”. Para elas, não. Era “Rejane”. E bastava, acreditam?

        Pois é, eu não acreditava.

        Talvez porque meu relacionamento com a autora fosse mais distante. Talvez porque, quando citamos alguém na academia, usamos seu sobrenome – como se para fazer ciência precisássemos ser ultra formais e cheios de “não-me-toques”. Só recentemente xs autorxs ganharam o direito de serem referenciados com o seu primeiro nome, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas. Ao menos na expressão oral em nosso campo, esse direito é assegurado há muito mais tempo. Palestrantes internacionais e pioneirxs são chamadxs Rolando, Clotilde, Juanita, Didi, Marly, André, Diego, quase como Criolo, Guinga, Hermeto, Zizi.

        E com Rejane não é diferente. Só eu mesma quem não sabia.

        Lembro-me da primeira vez em que escutei Rejane falar. Foi no Congresso Mundial de 2008, em Buenos Aires. Rejane trouxe um estudo de caso, no qual analisava a atitude da paciente de lançar todos os instrumentos do armário do consultório ao chão, comparando-a com a história de seu nascimento. Perplexidade, observação, espaço. Essa foram minhas reações frente a seu estudo de caso, do qual ainda guardo as anotações. Com um simples combinado e uma complexa leitura, Rejane pode transformar esse espaço de potencial ruptura em espaço de vínculo. Ainda com tamanha experiência, havia espaço de aprendizado nessa musicoterapeuta. Talvez seja esse um ingrediente fundamental para o processo em Musicoterapia. Abrir espaço, estar na distância. Tal qual a música, o fio do vínculo é tão invisível quanto marcante.

        E lá estive eu. Distante, há poucos passos da autora.

        Em 2010, a Associação de Musicoterapia do Paraná trouxe Rejane para palestrar em seu Fórum. O tema foi “Música: intermezzo da relação musicoterapêutica” e ela nos brindou com conferências de muita profundidade. Falou sobre seu trabalho clínico e sua contribuição para a Teoria da Musicoterapia a partir de estudos da Psicologia da Música, como os de Gagnon e Peretz, os quais relacionam afetos não a modos maior e menor, mas, principalmente, ao andamento de músicas. Nessas conferências, o que chamou minha atenção foi não somente o saber de Rejane, mas seu posicionamento perante seu não-saber. Com a mesma proximidade, ela falava do que talvez não se possa explicar, mostra seus “erros” em vídeo e os comenta – ainda assim, eu chamaria o que vi de momentos menos assertivos. Ela me pareceu caminhar entre seu saber e seu não saber, relacionar-se com ele sem vestir a capa de “super musicoterapeuta”.

        Foi então que algo inusitado aconteceu: Rejane escutou minhas apresentações.

        Não, eu nem a havia convidado. Trocamos algumas palavras num jantar entre profissionais após o evento, no qual ela me desejou “Boa Sorte” na vice-presidência da AMT-PR (acreditem, todxs xs gestores precisam!), e falou sobre o título de um de meus trabalhos: “mas não é óbvio que o Timbre depende da Fonte?”. Por isso, mesmo, é óbvio; dessa maneira, usei o título para falar de setting num contexto hospitalar (há mais não’s do que sim’s em hospitais, mas há possibilidades).

E quanto mais longe estive de Rejane, mais de perto a conhecia.

Morei em Montreal durante meu mestrado, e de lá escrevi para ela. Queria seu texto, aquele de sua leitura musicoterapêutica sobre Gagnon e Peretz (você deve estar curiosx, também!). De e-mail a e-mail, recebi mais do que conteúdo sobre Musicoterapia. Recebi conselhos e escuta. De me lembrar de meu valor, de não sucumbir à “síndrome de cucaracha” – agindo como se nós, latinoamericanos, tivéssemos só o que aprender e não o que ensinar. Foi então que percebi outra característica marcante de Rejane.

        Sua escuta é vasta. Extrapola o espaço da clínica.

E foram vários outros encontros, e-mails, conversas, leituras, palestras em que fui escutá-la. Recentemente me reencontrei com ela. Sentei-me no fundo de um praticável para escutar sobre Audição e Composição em Musicoterapia, aqui em Curitiba, em evento da universidade Unespar com a AMT-PR. É claro, escutei mais do que isso. Perplexidade, familiaridade, privilégio, foram alguns dos afetos que por mim passaram.

        Posso não estar longe, posso não estar perto de Rejane, mas a encontro em meu alcance.

        É autora de tantas publicações, e ainda parece fazer questão de responder todos os seus e-mails. É palestrante em tantos locais, e ainda diz em supervisão: “você já sabe o que fazer”. Tal qual Chomsky, Rejane não tem Facebook. Ao escutar, está presente. Ao não-saber, ela se declara humana. Ao palestrar, também conta histórias.

        Espero que essa história tenha sido tão agradável de ler como as que ela me contou. E que a comemoração no dia 07 de setembro de 2018 seja tão única quanto cada caso clínico que ela vem trazendo.

        Agradeço a oportunidade de escrever algumas linhas sobre Rejane, com mais liberdade artística do que em um artigo e com o mesmo compromisso e ética com o que se escreve Ciência.

        Grata, Rejane! Tem sido uma incrível jornada!

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