Lembranças escritas
Dois encontros com Lia Rejane
Por Gregório J. Pereira de Queiroz
Meu primeiro encontro com Lia Rejane ocorreu no Fórum Paulista de Musicoterapia, no ano 2000. A organização do Fórum decidiu trazer os principais representantes de diversas linhas de musicoterapia, e Lia foi convidada a falar sobre o Método Bonny, Guided Imagery and Music (GIM).
No intervalo entre as palestras, sentados à mesa no saguão do local do evento, e sem nunca ter me visto antes, Lia me pergunta: “para você a música causa emoção ou a música contém emoção?” Surpreso com a pergunta direta, feita sem preparativos, respondi como pude. À época achava que a música estimulava a emoção no ser humano.
Assim conheci Lia Rejane, a pesquisadora de todos os momentos, sempre atenta ao que se possa colher de interessante para seu trabalho, seus pensamentos e experiências, enfim, para a musicoterapia.
Seguimos trocando e-mails sobre o tema e continuamos a conversa. Suas palavras à época, das quais reproduzo pequenos trechos a seguir, e que em boa parte concordavam com o que eu havia lhe escrito, diziam que, para ela, a música “é capaz de mobilizar emoções no ser humano, embora ela não tenha emoções” e adiante “eu ainda prefiro a palavra mobilizar em lugar da palavra ‘estimular’ [que eu usara no e-mail] para não ter nenhuma relação com o behaviorismo porque aí a relação seria estímulo-resposta e não é assim que penso”.
E Lia continua: “eu costumo dizer que todos nós temos ‘núcleos’ de alegria, de tristeza... que são mobilizados ou que podem ser mobilizados” e “a música mobilizaria ora um, ora outro núcleo, dependendo da sua estrutura e da escuta, ou seja, do momento do ouvinte. Assim o ouvinte lhe responderia a partir de um de seus núcleos, ou daquele que for ativado”. E, completando, afirma que “o homem tem uma relação dialética com a música, isto é, ele faz a música e é por ela mobilizado”.
O modo de Lia pontuar as frases quando fala pode ser escutado na maneira como ela escreve. Quem a conhece falando, há de reconhecer o modo característico de criar ênfases e salientar palavras na fala tanto quanto na escrita.
O segundo encontro com Lia Rejane ocorreu quando a musicoterapeuta Cristiane Ferraz e eu preparamos uma série de quatro programas para a Rádio Cultura FM, de São Paulo, em 2002. Convidamos musicoterapeutas do Brasil e dos Estados Unidos para gravar depoimento de seus trabalhos e de suas ideias sobre musicoterapia, e pedimos a cada um que oferecesse um presente aos ouvintes. Alguns trouxeram trechos de suas sessões terapêuticas, outros cantaram em meio às suas falas.
Além da fala inspirada e estruturada, como lhe é peculiar, Lia Rejane escolheu duas músicas como presente para os ouvintes. Uma do repertório da música popular brasileira, a outro do repertório erudito. Respectivamente, Beatriz de Edu Lobo e Chico Buarque, cantada por Milton Nascimento, talvez uma das canções e interpretações mais belas do cancioneiro brasileiro, e o segundo movimento do Concerto nº 2 para piano e orquestra de Dmitri Shostakovich, de grande beleza melódica e harmônica.
Com esses presentes, Lia Rejane mostra mais do que aquilo que se convencionou chamar de “bom gosto” musical. Acima de bons gostos, há o entendimento da música, de seu significado, da busca da beleza não por gosto particular, mas enquanto sentido e significado para quem a faz e a escuta.
Além da interessante escolha de uma música do repertório erudito e outra do repertório popular, ambas de beleza quase diáfana, entendo que temos aqui a Lia Rejane para quem a compreensão da música é algo fundamental no trabalho musicoterápico. A música em sua relação com o ser humano é, a meu ver, o cerne de sua dedicada investigação científica e artística.
Unindo o sentido destes presentes musicais com as falas iniciais de Lia no e-mail para mim, procuro trazer meu entendimento sobre o profundo respeito que ela tem pela música em si mesma e da música em musicoterapia, isto é, na relação terapêutica. Nesse sentido, nada me soa mais claro do que as próprias palavras de Lia Rejane no programa na rádio:
“Na minha opinião, a Musicoterapia resgata o humano no ser humano. E isto é feito através de dois aspectos principais: da música e da relação do paciente com aquele que faz a música, ou seja, o terapeuta... Não se pode prescindir do humano que há no fazer musical. Não se pode prescindir do humano para resgatar o humano. E a música é o que nós temos para participar, nós musicoterapeutas, através do nosso humano, ou seja, do humano do terapeuta.”
A pianista Magdalena Tagliaferro se dizia “uma missionária da música”. Da mesma maneira, Lia Rejane nos ensina e inspira, a nós musicoterapeutas, seus alunos, colegas e admiradores o significado da música em relação ao humano.