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Lembranças escritas

Lia Rejane e a minha formação como musicoterapeuta

Por MT. Prof. Dra. Maria Helena B. C. Rockenbach

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Nesta ocasião em que a Associação de Musicoterapia do Rio de Janeiro completa 50 anos, data tão especial e significativa de sua existência, não posso deixar de contribuir, mesmo que de forma sucinta, com um depoimento sobre a importância de minha querida e sempre Mestra MT. Dra. Lia Rejane Mendes Barcellos, hoje homenageada, no IV Seminário Estadual de Musicoterapia AMTRJ -50 anos. Ela foi a responsável pela minha formação como musicoterapeuta. Este reconhecimento se deve também pelos relevantes préstimos à Comunidade da Musicoterapia no Brasil e no mundo.

A memória tem uma face complexa, funcionando como um elo entre o presente e o passado. No entanto, o passado não pode ser reconstruído, pois o tempo já se foi, nem tampouco é anulado. A memória permite o retorno ao tempo vivido, conforme a situação que a caracteriza: memória voluntária ou involuntária, consciência ou lembrança. Muito próximas ao diário, as memórias representam uma autobiografia, onde quem escreve dá testemunho de um tempo, de um meio social, acrescido de casos pessoais e familiares. A narrativa compõe-se de um pano de fundo histórico-social, sobretudo no filtro subjetivo de quem a escreve. Para Lejeune, o discurso autobiográfico se afirma por ser um discurso assumido pelo narrador fictício que se identifica com a pessoa real e com a personagem fictícia. Segundo ele, há uma tríade nesse processo: o narrador fictício identifica-se com a personagem principal, ou seja, autor= narrador=personagem. Lejeune considera a autobiografia um relato retrospectivo de uma pessoa real, partindo da sua própria existência, na qual se destaca a individualidade e o histórico de sua personalidade. O eu biográfico é, na verdade, um diálogo de instâncias múltiplas: um são sempre os vários que escrevem, mesmo quando está proposto pelo autor da narrativa e firmado pelo compromisso instaurado entre autor e leitor no momento da recepção do texto.

Assumo neste instante o papel de contadora de histórias contando a minha história como musicoterapeuta, uma história de vida, que passo a narrar e compartilhar com leitores de tantas outras histórias, paralelas, passadas e presentes. Procuro, nesta narrativa, levando em conta o distanciamento temporal, relatar os marcos seletivos de minha memória, em uma tentativa de explicar e/ou reconstruir o meu presente atual.

 Acredito não estar errada ao apresentar neste meu depoimento a descrição de três vivências e experiências que tive com a Prof. Dra. Lia Rejane Barcellos no Curso de Especialização em Musicoterapia, no Rio de Janeiro, no ano de 1999, que ficaram e estarão sempre presentes em minha memória.

Valendo-me de teorias de Platão sobre o Demiurgo, Lia Rejane pode ser considerada como aquela artífice que plasma e esculpe a realidade empírica de acordo com um ideal. Seu ideal era a construção da Musicoterapia. Mesmo com muitas dificuldades, desde o ano de 1979, como professora da disciplina de Musicoterapia, até o presente momento, continua sendo responsável pela formação de inúmeros musicoterapeutas brasileiros, consagrados e reconhecidos em suas práticas clínicas. 

 

Primeira vivência com Lia Rejane

Era o ano de 1999. Já tinha lido alguns livros de Lia Rejane Mendes Barcellos, principalmente Os Cadernos de Musicoterapia, assistido a algumas palestras da mesma em Simpósios, mas não tinha tido o prazer de conhecê-la pessoalmente. Nesta época cheguei ao Rio de Janeiro para fazer a Especialização em Musicoterapia no Conservatório Brasileiro de Música. Na primeira aula que tive com a eminente Mestra foi solicitado que escrevêssemos uma redação sobre  a nossa relação com a música. Lembro-me bem do título e até hoje, a tenho guardada: “Eu e a música”.  Relendo-a e lembrando-me dessa época, observo que, a partir de nossa história musical, Lia Rejane já antevia o futuro de seu aluno e/ou aluna como musicoterapeuta.  Sim, a música era condição imprescindível para nossa formação e sem a prática constante e aperfeiçoada de nosso instrumento musical, em meu caso, o piano, jamais poderíamos ser profissionais competentes.   Do mesmo modo, através de nossa redação, a Mestra já estava pesquisando a nossa história de vida, clínica e sonoro-musical, bem como o contexto cultural em que vivíamos.

  Senti-me confortável e livre para relatar à Lia Rejane as minhas primeiras experiências com a música, desde os quatro anos de idade em que ouvia ópera com minha mãe, bem como, aos dez anos, o aprendizado de acordeon e do piano e, aos 14 anos, já pianista da banda “Garotas do Ritmo”, do Colégio Nossa Senhora das Neves, em João Pessoa, Paraíba.  No final da adolescência, a música era tão presente em minha vida, que ao optar pelo vestibular, apesar de meu teste vocacional ter dado em primeiro lugar, Música e Medicina, optei pelas Letras.

   Não me arrependo do conhecimento e da cultura, dos idiomas aprendidos e da minha trajetória como professora, durante 19 anos no Curso de Letras e de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, mas, na maturidade, percebi que necessitava mudar de profissão.  Desejava uma profissão em que unisse meu talento natural para a música, mas que também contemplasse a necessidade de ajudar ao próximo. Foi assim que descobri a Musicoterapia  e  preparei-me para prova de instrumento e nivelamento para  cursar Musicoterapia no Rio.  Tive excelentes professores e mentores no curso, como Marco Antônio, Martha Negreiros, Marly Chagas, Márcia Godinho, entre outros, mas acredito, que, a responsável pela minha formação  em Musicoterapia  e trajetória  profissional foi  a professora Lia Rejane Mendes Barcellos. Ela acreditou em meu potencial e me fez voltar a estudar música, a acreditar na Musicoterapia e na satisfação que uma segunda carreira, que, posteriormente, se tornou primeira, poderia me proporcionar. Fui abraçada e acolhida pela Mestra com carinho, incentivo e visão futurista.

 

Segunda vivência em sala de aula: audição/escuta do adágio do Concerto para Oboé e orquestra,  em Dó m,  de Benedetto Marcello, na disciplina de Música em Musicoterapia

Nesta vivência a professora Lia nos solicitou que ouvíssemos atentamente a música e relatássemos o que sua audição nos tinha proporcionado. Foi uma experiência muito marcante, pois observei em meu corpo e minha mente uma gama de emoções relatadas à professora e aos colegas, que preconizava o poder da música como transformação e terapia.  Ao mesmo tempo a professora analisou musicalmente os primeiros compassos da partitura do concerto, nos mostrando a  tensão inicial, em pianíssimo, com a repetição da tônica  que poderia dar a noção de estabilidade, de tonificar, bem como o  aparecimento da dissonância que tendia a resolver-se rapidamente e, por último, um baixo contínuo repetitivo com a melodia apoiando-se no baixo contínuo como um líder. Era ‘a natureza polissêmica da música’ que estávamos vivenciando.  Todos os alunos participaram da vivência e os sentimentos que surgiram, como tristeza, solidão, abandono, paz, entre outros, coincidiram com estudo já feito pela autora sobre esse concerto e os sentimentos que dele emanavam.  Mais uma vez Lia Rejane tinha razão: a audição do concerto era prova da importância da leitura musicoterapêutica para os musicoterapeutas, e de, através da música, sermos escutados e compreendidos pelo musicoterapeuta na prática clínica.  Outras vivências se sucederam, mas essa foi a mais marcante no curso.

 

Terceira vivência: trabalho de conclusão da disciplina “ Métodos e Técnicas de Musicoterapia”. Recordo-me que relatei, em minha escrita, seguindo as orientações da Mestra, sobre as intervenções  verbais, faladas e cantadas  em musicoterapia, o processo musicoterapêutico de  improvisação musical com P., um menino de 10 anos, portador de um grave distúrbio mental. P. havia verbalizado, através da composição musical, na letra da canção, todo o sofrimento vivenciado pelo nascimento de um irmão mais moço. Segundo a professora, eu tinha interpretado toda angústia de P e na leitura da partitura musical improvisada, se percebia as mudanças da criança no processo musicoterapêutico.  Era mais uma prova do que a música era capaz de fazer e do que iria fazer mais adiante com meus pacientes, valendo-me, entre outras das técnicas de re-criação e composição musical (Bruscia).

 

Ao examinar essas três vivências tão importantes em minha formação profissional,  observo que dizem muito do que me tornei  e sou hoje: uma musicoterapeuta  com formação em Musicoterapia Neurológica, criativa eávida por conhecimentos,  trabalhando há mais de 10 anos na área de Reabilitação Neurológica. Utilizo na minha prática clínica músicas eruditas e populares,  várias técnicas de abordagens   e metodologias conseguindo bons resultados com minha clientela.  Posso me considerar, sem falsa modéstia, uma profissional segura e competente no que faço, mas, sem deixar de lado, a humildade e a certeza de que “conhecimento é para vida toda”.  Não sabemos tudo e podemos falhar.

Continuar investigando, pesquisando e clinicando foi meu aprendizado com nossa diva da Musicoterapia Brasileira. E diante dessa trajetória profissional, desejo que todos os musicoterapeutas brasileiros consigam levar à Musicoterapia a magnitude intelectual e a grandeza ética de nossa Mestra, como um legado precioso a ser cultivado por gerações atuais e futuras.

 

Porto Alegre, 03 de setembro de 2018.

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